“Refletindo o evangelho dominical” Por Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O relato da transfiguração é apresentado logo após o anúncio da paixão, seguido da repreensão de Pedro que esperava um messias poderoso para libertá-los das mãos dos romanos. Por isso dizemos que nesse relato estão entrelaçados dois aspectos paradoxais: sofrimento e glória. Lucas o confirma ao relatar que a conversa entre Moisés, Elias e Jesus versava sobre “sua partida que iria se consumar em Jerusalém” (Lc 9, 31).

O que esse relato nos quer transmitir? É um apelo aos discípulos a reconhecerem a verdadeira identidade de Jesus, o Filho amado do Pai, ao mesmo tempo que evidencia o crime hediondo daqueles que tramam sua morte.

Moisés e Elias: este ultimo, representante dos profetas e aquele, da Lei. Ambos encontraram-se com Deus na montanha. Aqui, porém, eles nem têm o rosto transfigurado nem ensinam os discípulos, mas conversam com Jesus.  O episódio da transfiguração mostra Jesus, o Filho amado do Pai, que realiza e sintetiza em sua própria vida a Lei e os Profetas. Agora é Ele que deve ser ouvido.

Quando vemos, nesse relato, sofrimento e glória articulados, não devemos interpretar que o sofrimento é o preço da glória; como se Deus barganhasse conosco. Não. A cruz ou sofrimento é consequência da fidelidade ao projeto do Pai. Faz parte da vida do discípulo de Jesus que busca viver um estilo de vida que se opõe à proposta mundana de morte. “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16, 24). Como o Pai glorificou e confirmou seu Filho, ele fará o mesmo com aqueles que buscarem conformar sua vida com a vida de Jesus. No ser humano de Jesus toda a humanidade foi glorificada.

A voz do Pai deve continuar ressoando em nossa vida: “Este é o meu Filho amado em quem me comprazo, ouvi-o”. Essas palavras nos remetem ao relato do batismo de Jesus: “Este é meu Filho amado em quem me comprazo” (Mt 3, 17). Consequentemente nos levam ao nosso batismo, realidade que nos incorpora a Cristo, nos dá vida nova, novo nascimento. E a quaresma sempre foi, na Igreja, desde os primórdios, tempo de preparação para o batismo (para os catecúmenos), e de retomada dos compromissos batismais para fiéis cristãos.

Escutar a voz do Filho, revelador do amor do Pai, deve ser a meta de todo cristão. Abraão ouviu, acreditou e “partiu” (cf. Gn 12, 1-4). Por isso se tornou a grande bênção para a sua posteridade. O cristão batizado, ouvindo a voz do Filho, confirmado pelo pedido de sua mãe: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2, 5), será sempre uma bênção para sua família e comunidade. Não se esqueça, porém, que é uma realidade que demanda a cruz. O que conforta é a perspectiva da ressurreição, da vida nova, da serenidade, da alegria verdadeira que “ninguém poderá tirar” (Jo 16,22).

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O MEDO DE ESCUTAR JESUS

“Ao ouvirem isso, os discípulos caíram de rosto em terra tomados de grande medo” (Mt 17,6). Os discípulos não suportaram ouvir aquela voz que confirmava a vida de Jesus. E não suportaram também a ordem: “Escutai o que ele diz”. Parece que os discípulos ainda não queriam ouvir a Jesus. Preferiam continuar ouvindo outras vozes.

Quão frequente é a tentação da recusa de ouvir a voz do Senhor tanto em nós e em nossas comunidades! Por isso a Igreja reza com o salmista: “Hoje, não fecheis o vosso coração, mas ouvi a voz do Senhor” (Sl 95). Preferimos, muitas vezes, permanecer na ignorância, na mesmice. Preferimos, muitas vezes, a recusa em ouvir os clamores dos pobres, uma opinião de quem pensa diferente, o chamado à conversão.

Então é preciso deixar-se tocar pelo Senhor: “Jesus aproximou-se, tocou neles e disse: ‘Levantai-vos! Não tenhais medo’” (Mt 17,7). É o toque do Senhor que nos acorda, que nos faz perceber e ver a história com outros olhos. Deixar-se tocar pelo Senhor é desenvolver a capacidade de ouvir as pessoas, de olhar o mundo com um olhar de Deus; de debruçar-se todos os dias sobre a Palavra de Deus e orientar a própria vida por ela. É deixar que o projeto do Pai ilumine os próprios projetos. É lançar-se com mais confiança nas mãos do Pai, sabendo que Ele cuida de todos nós.

O Servo de Deus, Pe. Júlio Maria De Lombaerde, comentando este evangelho, falava da importância de se retirar para ouvir o Senhor. Jesus – observava ele – conduziu os discípulos à parte sobre uma alta montanha. Significa que é preciso deixar de lado as distrações e preocupações mundanas para estar com o Senhor e ouvi-lo. “Enquanto uma alma está entregue às preocupações das noticias, aos devaneios, ao tumulto dos vãos pensamentos, fica escravizada pela imaginação e pelas distrações, e Deus não é para ela senão o Deus desconhecido de Atenas (At 17,23)”. E continua: “O homem distraído não se conhece a si mesmo, não vê o que deve reformar em si, não descobre razões de melhorar, de praticar a virtude. Toda a sua vida decorre no esquecimento de Deus e na ignorância dos próprios defeitos. (…) O homem espiritual, porém quer elevar-se da terra, aproximar-se de Jesus transfigurado, transfigurar-se com Ele pela prática da virtude” (Comentário Litúrgico, p. 164-165).

Sobe, pois, a montanha! Escuta o Mestre! Deixa-te tocar por ele! Põe-te de pé e segue a Jesus! Não tenhas medo de ouvi-lo e de segui-lo! O movimento é sempre este: subida e descida: subir a Montanha para estar com ele. Descer a Montanha para estar com os outros de modo novo, iluminado, transfigurado, encantado, fortalecido.

*Campanha da Fraternidade 2020: Um dos granes desafios para o nosso tempo é definir o que se entende por justiça. Trata-se, sem dúvida, de uma palavra muito usada, porém, com muitas compreensões diferentes. O ponto em comum reside no fato de que se deva dar a alguém aquilo que ele merece. Diferem, entretanto, as compreensões ao especificar o que é merecido. Na maioria das vezes, trata-se daquilo que pode ser retribuído, com o dinheiro, com o trabalho, com o bom comportamento, atendendo às expectativas do grupo ou da sociedade em que se está inserido. Esse não é um conceito errado de justiça, mas ele é incompleto, porque deixa de fora os seres humanos que, de algum modo, não podem retribuir: os pobres, os pecadores e os inimigos (Texto-base, 103).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

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