O tempo da Quaresma nos remete aos quarenta anos de travessia do deserto pelo Povo de Israel. Tempo e lugar de provação, de cansaço, de dor, de carências e privações. Lugar de encontro com Deus e com o Diabo. Lugar de fortalecer as raízes no caminho do bem. Por que não dizer que o deserto é também o nosso cotidiano? As desordens da vida, as seduções, as provações, as aflições e desafios que a vida nos coloca são nosso deserto. A quem recorremos? Como lidamos? De que armas nos servimos? Por quem optamos? De que lado nos colocamos?
Jesus faz essa experiência: quarenta dias se preparando para a missão. Esse tempo representa toda a sua vida que foi tempo de prova, das tentações de um messianismo sectário, mas também de experiência do Pai a quem foi sempre fiel.
As tentações de Jesus são também as nossas. O tentador quer levá-lo a desviar-se do projeto do Pai. Primeiro sugere-lhe transformar a pedra em pão. Jesus não veio para si, mas para todos. Não veio fazer milagres; veio anunciar um Reino de partilha fundado na vivência da Palavra de Deus. Quem se alimenta da Palavra de Deus partilha, multiplica, solidariza-se. “Vê, sente compaixão e cuida da pessoa” (Lc 10,33-34). Não vive em função de si, mas do Reino do Pai.
A segunda tentação coloca Jesus no ponto mais alto do Templo sugerindo que ele se lance dali, pois os anjos o tomarão nas mãos. É a tentação da busca de prestígio pessoal, da fama, da ostentação de poder, de capricho próprio. É a tentação de deixar tudo por conta de Deus, de lançar-se na vida sem as devidas precauções, pensando que Deus deve fazer tudo por nós, sem nenhum esforço de nossa parte. Ou seja, não se pode jogar para Deus aquilo que é responsabilidade do ser humano. Essa tentação mostra explicitamente o uso da religião para busca de sucesso. Quanta gente anda atrás de promessa, de milagres, de adivinhações etc. Na verdade, cada um deveria assumir seu papel na sociedade. Como cristãos o Senhor nos chama a lançar sobre o mundo um olhar de misericórdia. Ele nos convida a deixarmos de buscar a nós mesmos, nosso bem-estar, nossos desejos realizados, nosso sucesso e voltarmos nosso olhar para fora, para o outro. O rosto do outro precisa me interpelar, me incomodar e me desacomodar. Essa foi a atitude que Jesus assumiu diante do Pai. É diabólico organizar uma religião como um sistema de crenças e práticas para se conseguir segurança. Não se constrói um mundo mais humano refugiando-se cada um em sua religião. É preciso arriscar-se confiando em Deus, como Jesus.
A terceira e última tentação é a de servir ao projeto do diabo, abandonando o projeto de Deus em troca de poder e glória mundanos. São aquelas tentações que sofremos diante de possibilidade de ganhar mais dinheiro, de ter mais, de dominar mais, com prejuízo para muitos. É trocar o projeto do Pai pelo próprio projeto egoísta e consumista. É aquela situação que nos possibilita crescer dando prejuízo aos outros; que leva a abandonar a família, os filhos para vantagem pessoal, deixando muitos no sofrimento. É a exploração irresponsável da natureza com prejuízo para o meio ambiente: a terra geme dores de agonia. É também a troca de projetos de políticas públicas que tiram milhões da miséria, por projetos de políticas capitalistas que entregam bens e serviços nas mãos de banqueiros, latifundiários, empresários e políticos sem consciência que só pensam em tirar proveito dos espaços de poder.
Estão aí as tentações de Jesus que são também nossas. Ele as venceu todas pela força da Palavra, da oração, da comunhão profunda com o Pai. E nós? Quais são os instrumentos de que lançamos mão para vencer as tentações do poder, da glória, do consumismo? Como está nossa vida de oração? Que lugar ocupa a Palavra de Deus em nossa vida? Quanto tempo tiramos por dia para fazer oração? Quanto tempo reservamos para a comunidade, para o serviço gratuito, generoso? Quando nos ocorre uma tentação, que fazemos? De que nos valemos?
Quaresma é tempo de revisão de vida, de conversão, de convergir as forças para o “único necessário” (cf. Lc 10,42). É bom que cada um de nós verifique qual pecado precisa ser excluído de sua vida a fim de curar as feridas que por vezes provocou no coração e na vida dos irmãos.
*Campanha da Fraternidade 2020: “Na parábola dos trabalhadores da décima primeira hora (Mt 20,1-11), encontramos um exemplo de justiça restaurativa. Aquele que saiu à procura de trabalhadores para sua vinha contratou vários operários ao longo de todo o dia. No entardecer, na hora do pagamento, os primeiros a serem chamados pensam que, por merecimento, deveriam receber mais do que aqueles que chegaram ao findar do dia. Foi então que o dono da vinha surpreendeu a todos, pois para ele, não havia diferença. Todos receberam o mesmo valor pelo serviço prestado. Para o dono da vinha, as pessoas não são classificadas em razão do que podem render pelos serviços prestados. São classificas a partir de um amor que é graça radical que as considera, simplesmente, porque elas existem” (Texto-base, 127).
Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN