Coroamos as celebrações de Finados e de Todos os Santos com esse belíssimo texto para esse Domingo: nosso Deus não é um Deus dos mortos, mas dos vivos.
É necessário entender bem o relato de hoje. Para isso precisamos voltar alguns séculos na história e nos colocarmos dentro do contexto do tempo de Jesus. Precisamos entender a compreensão que se tinha de ressurreição. Para isso é preciso tecer algumas considerações:
O israelita estava convicto de três elementos fundantes na vida: viver em paz na sua própria terra, ter vida longa e deixar numerosa prole. Isso é que deixava feliz e realizado o crente de Israel.
A narrativa de Macabeus (século II a.C.) proclamada hoje (2Mc 7,1-14), quer responder a algumas perguntas que, certamente, pulsavam no coração do judeu fiel: “Se a realização da pessoa estava em viver em paz no própria terra, em ter longa vida e uma família numerosa, como ficaria a situação de quem não tivesse condições de experimentar tal realidade?”
A resposta a essa crise existencial está em acreditar na possibilidade de vida após a morte. Do contrário a vida perderia o sentido. De que valeria lutar por uma causa justa, empenhar-se por viver honestamente, manter-se fiel ao ensinamento de Deus, se tudo acabasse com a morte? Deus nos teria criado para viver a vida como uma “paixão inútil”?
Os saduceus, pertencentes à aristocracia sacerdotal, preocupados com a manutenção de seus privilégios, não acreditavam na ressurreição dos mortos porque não arriscavam a vida pra nada. Bastava-lhes a vida presente, sem se preocupar com ninguém. Viviam afogados na própria autossuficiência.
Então foi se formando no coração do israelita a fé na vida post-mortem. Ou seja, a morte não era a última palavra de Deus sobre a pessoa. É preciso ficar claro também que essa compreensão da vida após a morte não era a “sobrevivência da alma”, mas a subsistência do homem todo: alma e corpo. E não era uma continuação desta vida terrestre, mas uma vida nova transformada: ser humano plenificado por Deus e em Deus.
A pergunta dos saduceus tem a pretensão de contrariar a fé na ressurreição proclamada pelos fariseus e pelo próprio Jesus. Eles querem argumentar que a ressurreição contraria a Lei de Moisés. A resposta de Jesus vem esclarecer que o conceito que os saduceus têm de ressurreição é errôneo, pois esta não é repetição desta vida, nem está condicionada a leis psíquicas e biológicas, mas é uma realidade nova, divina, espiritual: a ressurreição não é “carnal”, mas “espiritual”, isto é, a pessoa é divinizada: “Semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,44). Além disso, Jesus afirma que a própria Escritura fala desta vida: Abraão, Isaac e Jacó não estão mortos, mas vivos.
Bem. De tudo isso deve ficar claro para nossa fé que ressurreição não é prolongamento desta vida com suas dores e lágrimas, complicações como casar-se e descasar-se, comprar e vender, nem muito menos de prolongar a estrutura patriarcal de que se aproveitavam os homens ricos de então. Também não se trata de reencarnação, que seria como uma segunda chance, no entendimento de seus adeptos, e que, em última instância, esconde dentro de si o desejo de tirar da morte seu caráter de definitivo e de negar a Deus a misericórdia e o poder de dar gratuitamente a vida eterna aos seus filhos e filhas.
Na vida pós-morte aqueles que fizeram o bem irão para vida de Deus, viverão eternamente. Aqueles que optaram pelo mal serão excluídos da participação da vida divina, pois se fecharam em si mesmos e recusaram o amor benevolente do Pai manifestado em Jesus. A vida eterna é dom de Deus. Nossa tarefa é acolhê-la vivendo de tal modo que correspondamos a esse dom. O que faltar, a Graça supre abundantemente: “Onde avultou o pecado, a graça superabundou” (Rm 5,20).
Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN
Fonte: https://aurelius.blogs.sapo.pt/deus-vive-e-nos-quer-vivos-67660